No vosso conversor para a nova ortografia, e em muitas respostas a dúvidas, utilizam a expressão "português europeu", por oposição a português do Brasil ou português brasileiro. Tenho visto noutros sítios a expressão português luso-africano. Não será mais correcta? Como qualquer língua viva, o português não é alheio à variação linguística e
contém diferentes variantes e variedades, nomeadamente a nível geográfico,
social e temporal. O português falado em Portugal continental e nos arquipélagos
da Madeira e dos Açores é designado por variedade europeia ou
português europeu (ou ainda português de Portugal) e abrange
inúmeros dialectos (divididos ou agrupados segundo características comuns). Esta
designação de português europeu é frequentemente contraposta à de português
do Brasil (ou português brasileiro ou americano), por serem as
variedades do português mais estudadas e alvo de descrição linguística. Alguns
dialectos do português de Angola e do português de Moçambique
dispõem já de descrições e estudos, mas ainda sem muita divulgação fora do
âmbito académico.
A designação de português luso-africano é, do ponto de vista linguístico,
incorrecta, uma vez que as características do português de Portugal, como
sistema linguístico, são diferentes das características do português falado em
cada um dos países africanos de língua oficial portuguesa (nomeadamente do
português de Angola, do português de Cabo Verde, do português da Guiné-Bissau, do
português de Moçambique ou do português de São Tomé e Príncipe) ou de outros
países (como Timor-Leste) ou territórios onde se fale o português. O único ponto
em que poderá haver uma designação que indique uma aproximação luso-africana é
exclusivamente em termos de norma ortográfica. Ainda assim, as práticas
ortográficas divergem amiúde, principalmente no uso do apóstrofo em contextos
não previstos no texto do Acordo Ortográfico de 1990 e das letras k, w
e y em nomes comuns e não exclusivamente em nomes próprios ou derivados
de nomes próprios estrangeiros. No que diz respeito ao léxico, à fonética ou à
sintaxe, trata-se de variedades e normas com traços característicos que as
distinguem.
Como as ferramentas linguísticas da gama FLiP não se limitam ao campo estrito da
ortografia, mas ao processamento do
português como língua natural, a Priberam não adopta o adjectivo
luso-africano para qualificar português, variedade, norma ou palavra
afim. Esta foi também, aparentemente, a opção da redacção do Acordo Ortográfico
de 1990, onde é usada, na "Nota Explicativa", ponto 5.1, a expressão "português
europeu" ("Tendo em conta as diferenças de pronúncia entre o português
europeu e o do Brasil, era natural que surgissem divergências de acentuação
gráfica entre as duas realizações da língua.").
Na frase "...o nariz afilado do Sabino. (...) Fareja, fareja, hesita..."
(Miguel Torga - conto "Fronteira") em que Sabino é um homem e não um animal, deve considerar-se que figura de estilo? Não é personificação, será animismo? No mesmo conto encontrei a expressão "em seco e peco". O que quer dizer?
Relativamente à primeira dúvida, se retomarmos o contexto dos extractos que
refere do conto “Fronteira” (Miguel Torga, Novos Contos da Montanha, 7ª ed.,
Coimbra: ed. de autor, s. d., pp. 25-36), verificamos que é o próprio Sabino que
fareja. Estamos assim perante uma animalização, isto é, perante a atribuição de
um verbo usualmente associado a um sujeito animal (farejar) a uma pessoa
(Sabino). Este recurso é muito utilizado por Miguel Torga neste conto
para transmitir o instinto de sobrevivência, quase animal, comum às gentes de
Fronteira, maioritariamente contrabandistas, como se pode ver por outras
instâncias de animalização: “vão deslizando da toca” (op. cit., p. 25),
“E aquelas casas na extrema pureza de uma toca humana” (op. cit., p. 29),
“a sua ladradela de mastim zeloso” (op. cit., p. 30), “instinto de
castro-laboreiro” (op. cit., p. 31), “o seu ouvido de cão da noite” (op.
cit., p. 33).
Quanto à segunda dúvida, mais uma vez é preciso retomar o contexto: “Já com
Isabel fechada na pobreza da tarimba, esperou ainda o milagre de a sua
obstinação acabar em tecidos, em seco e peco contrabando posto a nu” (op.
cit. p.35). Trata-se de uma coocorrência privilegiada, resultante de um jogo
estilístico fonético (a par do que acontece com
velho e
relho), que corresponde a uma dupla adjectivação pré-nominal, em que o
adjectivo
seco
e o adjectivo
peco
qualificam o substantivo contrabando, como se verifica pela seguinte
inversão: em contrabando seco e peco posto a nu. O que se pretende
dizer é que o contrabando, composto de tecidos, seria murcho e enfezado.