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Tenho uma dúvida na utilização dos pronomes "lhe" ou "o". Por exemplo, nesta frase, qual é a forma correta: "para Carlos não lhe perturbava a existência, ou mesmo a necessidade dos movimentos da vanguarda" ou "
para Carlos não o perturbava a existência, ou mesmo a necessidade dos movimentos da vanguarda"?
A questão que nos coloca toca uma área problemática no uso da língua, pois trata-se de informação lexical, isto é, de uma estrutura que diz respeito a cada palavra ou constituinte frásico e à sua relação com as outras palavras ou outros constituintes frásicos, e para a qual não há regras fixas. Na maioria dos casos, os utilizadores conhecem as palavras e empregam as estruturas correctas, e normalmente esse conhecimento é tanto maior quanto maior for a experiência de leitura do utilizador da língua.
No caso dos pronomes clíticos de objecto directo (o, os, a, as, na terceira pessoa) ou de objecto indirecto (lhe, lhes, na terceira pessoa), a sua utilização depende da regência do verbo com que se utilizam, isto é, se o verbo selecciona um objecto directo (ex.: comeu a sopa = comeu-a) ou um objecto indirecto (ex.: respondeu ao professor = respondeu-lhe); há ainda verbos que seleccionam ambos os objectos, pelo que nesses casos poderá dar-se a contracção dos pronomes clíticos (ex.: deu a bola à criança = deu-lhe a bola = deu-lha).
O verbo perturbar, quando usado como transitivo, apenas selecciona objectos directos não introduzidos por preposição (ex.: a discussão perturbou a mulher; a existência perturbava Carlos), pelo que deverá apenas ser usado com pronomes clíticos de objecto directo (ex.: a discussão perturbou-a; a existência perturbava-o) e não com pronomes clíticos de objecto indirecto.
Assim sendo, das duas frases que refere, a frase “para Carlos, não o perturbava a existência, ou mesmo a necessidade dos movimentos da vanguarda” pode ser considerada mais correcta, uma vez que respeita a regência do verbo perturbar como transitivo directo. Note que deverá usar a vírgula depois de “para Carlos”, uma vez que se trata de um complemento circunstancial antecipado.
Tenho uma dúvida: a gramática da língua portuguesa não diz que um advérbio antes do verbo exige próclise? Não teria de ser "Amanhã se celebra"?
Esta questão diz respeito a uma diferença, sobretudo no registo coloquial,
entre as variedades europeia e brasileira do português, que, com a natural
evolução da língua, se foram distanciando relativamente a este fenómeno
linguístico. No que é considerado norma culta (portuguesa e brasileira), porém,
sobretudo na escrita, e em registo formal, ainda imperam regras da gramática
tradicional ou normativa, fixas e pouco permissivas.
No português de Portugal, se não houver algo que atraia o pronome pessoal átono,
ou clítico, para outra posição, a ênclise é a posição padrão, isto é, o pronome
surge habitualmente depois do verbo (ex.: Ele mostrou-me o quadro);
os casos de próclise, em que o pronome surge antes do verbo (ex.: Ele não
me mostrou o quadro), resultam de condições particulares, como as que
são referidas na resposta à dúvida
posição dos clíticos. Nessa resposta sistematizam-se os principais
contextos em que a próclise ocorre na variante europeia do português, sendo um
deles a presença de certos advérbios ou locuções adverbiais, como ainda
(ex.: Ainda ontem as vi), já (ex.: Já o conheço
bem), oxalá (ex.: Oxalá se mantenha assim), sempre
(ex.: Sempre o conheci atrevido), só (ex.: Só lhes
entreguei o documento hoje), talvez (ex.: Talvez te lembres
mais tarde) ou também (ex.: Se ainda estiverem à venda, também
os quero comprar). Note-se que a listagem não é exaustiva nem se aplica
a todos os advérbios e locuções adverbiais, pois como se infere a partir de
pesquisas em corpora com advérbios como hoje (ex.: Hoje
decide-se a passagem à final) ou com locuções adverbiais como mais tarde
(ex.: Mais tarde compra-se outra lente), a tendência na norma europeia é
para a colocação do pronome após o verbo. A ideia de que alguns advérbios (e não
a sua totalidade) atraem o clítico é aceite até por gramáticos mais
tradicionais, como Celso Cunha e Lindley Cintra, que referem, na página 313 da
sua Nova Gramática do Português Contemporâneo, que a língua portuguesa
tende para a próclise «[...] quando o verbo vem antecedido de certos advérbios (bem,
mal, ainda, já, sempre, só, talvez, etc.) ou expressões adverbiais, e não
há pausa que os separe».
No Brasil, a tendência generalizada, sobretudo no registo coloquial de língua, é
para a colocação do pronome antes do verbo (ex.: Ele me mostrou o
quadro). Daí a relativa estranheza que uma frase como Amanhã celebra-se o
Dia Mundial do Livro possa causar a falantes brasileiros que produzirão mais
naturalmente um enunciado como Amanhã se celebra o Dia Mundial do Livro.
O gramático brasileiro Evanildo Bechara afirma, na página 589 da sua Moderna
Gramática Portuguesa, que «Não se pospõe pronome átono a verbo modificado
diretamente por advérbio (isto é, sem pausa entre os dois, indicada ou não por
vírgula) ou precedido de palavra de sentido negativo.». Contrariamente a Celso
Cunha e Lindley Cintra, Bechara propõe um critério para o uso de próclise que
parece englobar a totalidade dos advérbios. Resta saber se se trata de um
critério formulado a partir do tendência brasileira para a próclise ou de uma
extensão da regra formulada pela gramática tradicional. Estatisticamente, porém,
é inequívoca a diferença de uso entre as duas normas do português.