Tenho duas questões a colocar-vos, ambas directamente relacionadas com um programa televisivo sobre língua portuguesa que me impressionou bastante pela superficialidade e facilidade na análise dos problemas da língua. Gostaria de saber então a vossa avisada opinião sobre os seguintes tópicos:
1) no plural da palavra "líder" tem de haver obrigatoriamente a manutenção da qualidade da vogal E?
2) poderá considerar-se que a expressão "prédio em fase de acabamento" é um brasileirismo?
1) No plural da
palavra líder, a qualidade da vogal postónica (isto é, da vogal que
ocorre depois da sílaba tónica) pode ser algo problemática para alguns falantes.
Isto acontece porque, no português europeu, as vogais a, e e o
geralmente não se reduzem foneticamente quando são vogais átonas seguidas de
-r em final de palavra (ex.: a letra e de líder,
lê-se [ɛ],
como a letra e de pé e não como a de se),
contrariamente aos contextos em que estão em posição final absoluta (ex.: a letra
e de chave, lê-se [i], como a
letra e de se e não como a de pé).
No entanto, quando estas vogais deixam de estar em posição final de palavra (é o
caso do plural líderes, ou de derivados como liderar
ou liderança), já é possível fazer a elevação e
centralização das vogais átonas, uma regularização muito comum no português,
alterando assim a qualidade da vogal átona de
[ɛ] para [i], como na alternância
comédia > comediante ou pedra >
pedrinha. Algumas palavras, porém, mantêm inalterada a
qualidade vocálica mesmo em contexto átono (ex.: mestre > mestrado),
apesar de se tratar de um fenómeno não regular. Por este motivo, as pronúncias
líd[i]res ou líd[ɛ]res
são possíveis e nenhuma delas pode ser considerada incorrecta; esta reflexão
pode aplicar-se à flexão de outras palavras graves terminadas em -er,
como cadáver, esfíncter, hambúrguer, pulôver
ou uréter.
2) Não há qualquer motivo linguístico nem estatístico para considerar brasileirismo a expressão em fase de acabamento. Pesquisas em corpora e em motores de busca demonstram que a expressão em fase de acabamento tem, no português europeu, uma frequência muito semelhante a em fase de acabamentos.
Na frase: Nós convidámo-vos, o pronome é enclítico, o que obriga à omissão do -s final na desinência -mos ao contrário do que o V. corrector on-line propõe: Nós convidamos-vos, o que, certamente, é erro. Nós convidamos-vos, Nós convidámos-vos, Nós convidamo-vos, Nós convidámo-vos: afinal o que é que está correcto?
A forma nós convidámos-vos encontra-se correcta, tal como é verificado pelo FLiP on-line.
A forma *nós convidámo-vos corresponde a um erro muito
frequente dos utilizadores da língua, por analogia com o uso enclítico do
pronome nos (como em nós convidámo-nos); apesar de aparentemente
semelhantes, estes dois casos correspondem a contextos diferentes que
determinaram a grafia actual. Em casos como nós convidámo-nos, estamos
perante a terminação da primeira pessoa do plural -mos, seguida do
clítico nos; estas duas terminações são quase homófonas, pelo que a
língua encontrou uma forma de as dissimilar ou diferenciar, num fenómeno
designado “dissimilação das sílabas parafónicas” por Martins de Aguiar, citado
por CUNHA e CINTRA na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Ed. João
Sá da Costa, 1998, p. 318). No caso de nós convidámos-vos não há
necessidade de dissimilação, pelo que a grafia deverá incluir o -s final
da desinência da primeira pessoa do plural.
Relativamente ao uso dos clíticos e às alterações ortográficas que estes
implicam quando se seguem à forma verbal (ênclise), pode dizer-se que não há
qualquer alteração ortográfica com os pronomes pessoais átonos que são complemento
indirecto (me, te, lhe, vos, lhes), excepto com o pronome nos, que
provoca a já referida redução da forma verbal da desinência da primeira pessoa
do plural (de *-mos-nos para -mo-nos). A este respeito, veja-se o
anexo relativo aos verbos no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(Círculo de Leitores, 2002) ou 12 000 verbes portugais et brésiliens - Formes
et emplois (“Collection Bescherelle”, Paris, Hatier, 1993), duas das poucas
obras de referência que explicitamente referem este fenómeno.
Em relação aos clíticos de complemento directo (o, a, os as), quando há
ênclise apresentam alteração para -lo, la, -los, -las se se seguirem a
forma verbal terminada em -r, -s ou -z ou ao advérbio
eis, sendo que há redução da forma verbal (ex.: convidá-lo,
convidamo-las, di-lo, ei-la), por vezes com necessidade de acentuação
gráfica (ver também outra dúvida sobre este assunto em
escreve-lo e escrevê-lo). Se a forma verbal terminar em nasal (ex.: convidam, convidaram), o pronome
enclítico altera-se para -no, -na, -nos, -nas (ex.: convidam-no,
convidaram-nas).
As construções *nós convidamo-vos e *nós convidámo-vos estão então
incorrectas, pois não há motivo para retirar o -s à terminação da
primeira pessoa do plural quando seguida do clítico vos. No português europeu, as construções
nós convidamos-vos e nós convidámos-vos estão ambas correctas,
distinguindo-se apenas pelo tempo verbal. A primeira corresponde ao presente do
indicativo (ex.: Hoje convidamos-vos para uma visita às grutas) e a
segunda ao pretérito perfeito do indicativo (ex.: Ontem convidámos-vos para um
passeio de barco).