A descrição de "cigano" no Dicionário Priberam, entre outras coisas, diz que os ciganos são trapaceiros. Isto não devia ser revisto por ser preconceituoso?
Um dicionário deve ter palavras e sentidos que podem insultar ou ofender? Além de "cigano", palavras como "galego", "monhé", "judeu", "preto", "fufa" ou "paneleiro"?
O Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa (DPLP) não diz que os ciganos são trapaceiros; o que se apresenta é, entre outras acepções, um uso real, ainda que potencialmente ofensivo, da palavra cigano como sinónimo de trapaceiro, o que é substancialmente diferente.
A lexicografia actual assume que um dicionário deve seguir uma abordagem descritiva na selecção das palavras e na forma como as define, usando nomeadamente um conjunto de etiquetas ou sinais para assinalar níveis de língua (como linguagem informal ou calão) ou usos específicos (como expressões depreciativas ou insultuosas), não devendo o autor ou editor do dicionário impor a sua opinião sobre o uso da língua.
Por outras palavras, a função de um dicionário passa por uma descrição dos usos da
língua, devendo basear-se essencialmente em factos linguísticos e não
estabelecer juízos de valor relativamente a eles, antes
apresentá-los o mais objectivamente possível. Em relação às definições da
palavra cigano,
o DPLP veicula o significado que ela apresenta na língua,
mesmo que alguns dos seus significados possam revelar o preconceito ou a
discriminação presentes no uso da língua.
A acepção que se considera preconceituosa tem curso actualmente em Portugal (como se pode verificar através de pesquisa em corpora e em motores de busca na internet), sendo
usada em registos informais e com intenções pejorativas, estando registada,
para além de no DPLP, nas principais obras lexicográficas de língua portuguesa,
como o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea (Academia das
Ciências de Lisboa/Verbo, 2001) ou o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
(edição brasileira da Editora Objetiva, 2001; edição portuguesa do Círculo de
Leitores, 2002). O DPLP não pode omitir ou branquear determinados significados,
independentemente das convicções de cada lexicógrafo ou utilizador do
dicionário.
Como acontece com qualquer palavra, o uso desta acepção de cigano decorre da
selecção feita por cada utilizador da língua, consoante o registo de língua e o
conhecimento das situações de comunicação e dos códigos de conduta social. O
preconceito não pode ser imputado ao dicionário, que se deve limitar a registar
o uso (daí as indicações de registo pejorativo [Pejor.]). Este não é, na língua portuguesa ou em qualquer outra língua, um
caso único, pois as línguas, enquanto sistemas de comunicação, veiculam também
os preconceitos da cultura em que se inserem.
Esta reflexão também se aplica a outros exemplos, como o uso dos chamados
palavrões, ou tabuísmos, cuja utilização em determinadas situações é considerada
altamente reprovável, ou ainda de palavras que têm acepções depreciativas no que
se refere a distinções sexuais, religiosas, étnicas, etc.
Ao alertar para termos e empregos preconceituosos, informais ou obscenos, muitas vezes desconhecidos dos falantes, seja porque pertencem a diferentes enquadramentos socioculturais, seja porque são falantes estrangeiros, os dicionários estão a alertar os consulentes para a possibilidade de usarem linguagem ofensiva ou de ferirem as susceptibilidades de outros falantes.
Se, de fato, o novo acordo ortográfico dos países de língua portuguesa começar a
vigorar, no qual será extinto o trema (¨), como saberemos a pronúncia correta do "QUE" em certa palavras como seqüestro, onde o "U" é pronunciado, e querida, onde não é.
A ortografia é um conjunto de regras convencionadas, e, como tal, é artificial e às vezes “pouco amiga do utilizador”. O mais das vezes, é o utilizador da língua que mais lê e mais consulta obras de referência, como dicionários, prontuários e
afins, que melhor conhece essas regras e que melhor escreve. No caso do trema, a sua utilização parece resolver alguns problemas, mas pode criar outros, sobretudo na aprendizagem da pronúncia a partir da escrita.
Sendo o trema um sinal ortográfico convencionado para assinalar que uma vogal não forma ditongo com outra vogal que está imediatamente antes ou depois, no português do Brasil, este sinal usa-se apenas sobre o -u- nos grupos de
letras güe, güi, qüe ou qüi, para indicar que o -u- é também lido (se o -u- for tónico, em vez de um trema usa-se um acento agudo, ex.: averigúe). Mas esta regra cria também casos em que há várias
grafias possíveis (como nas grafias de sangüinário/sanguinário), quando há pronúncias alternativas possíveis, o que pode criar dúvidas nos falantes.
A abolição do trema com a entrada em vigor do novo acordo ortográfico será uma questão de habituação, como para muitas outras convenções ortográficas (por exemplo, em 1945 em Portugal e em 1971 no Brasil, a abolição de distinção
ortográfica com acento circunflexo diferencial em palavras como acerto [verbo] / acêrto [substantivo]), pois os utilizadores da língua ou já conhecem as palavras ou consultam obras de referência (recorde-se que o trema no português de Portugal foi instituído em 1920 e suprimido em 1945, excepto em nomes estrangeiros e seus derivados, e que isso não constringe os falantes).
Esta reflexão é particularmente pertinente se tivermos em conta que no português do Brasil, em 1971, o trema já havia sido abolido nos hiatos átonos, onde tinha a mesma função de assinalar que uma vogal não forma ditongo com a anterior. Por exemplo, em agauchar, arcaizante, juizinho,
paraibano, proibição, reunião, sauval,
viuvez, entre muitas outras palavras, estamos perante hiatos (isto é, grupos de duas vogais que não formam ditongo, logo pertencem a sílabas diferentes), grafados sem trema, para cuja correcta pronúncia (do ponto de vista
etimológico, pelo menos) será necessário conhecer a palavra ou a sua etimologia (ex.: agauchar < gaúcho), consultar um dicionário que tenha essa informação (por exemplo, o Dicionário Houaiss ou o Dicionário Aurélio têm pequenas indicações de ortoépia) ou perguntar a quem sabe (que é o que fazem geralmente as crianças ou os estudantes de português).