Como se escreve? Eu não consigo deitar-me cedo. Eu não consigo me deitar cedo.
Não consigo perceber se o não está associado ao primeiro ou segundo verbo, pois nos verbos reflexos na negativa os pronomes vêm antes do verbo.
O verbo conseguir,
à semelhança de outros verbos como desejar, querer ou tentar,
tem algumas propriedades análogas às de um verbo auxiliar mais típico (como o
verbo ir, por exemplo). Nestes casos, este verbo forma com o verbo
principal uma locução verbal, podendo o clítico estar antes do verbo auxiliar
(ex.: eu não me vou deitar cedo; eu não me consigo
deitar cedo) ou depois do verbo principal (ex.: eu não vou deitar-me
cedo; eu não consigo deitar-me cedo). Isto acontece porque o
verbo considerado auxiliar ou semiauxiliar pode formar com o verbo que o sucede
uma locução verbal coesa, como se fosse um só verbo (e, nesse caso, o clítico é
atraído pela partícula de negação não e desloca-se para antes da locução
verbal) ou, por outro lado, o verbo conseguir pode manter algumas
características de verbo pleno (e, nesse caso, o clítico me pode
manter-se ligado ao verbo principal deitar, de que depende
semanticamente). Nenhuma das duas construções pode ser considerada incorrecta, apesar de a segunda ser frequentemente considerada preferencial.
Nesta frase, o marcador de negação (o advérbio não) está
claramente a negar o verbo conseguir e é semanticamente equivalente a "eu
deito-me tarde, porque não sou capaz de me deitar cedo". Se estivesse a negar o
verbo deitar-se (eu consigo não me deitar cedo), teria um valor
semântico diferente, equivalente a "eu sou capaz de me deitar tarde", devendo
nesse caso o clítico estar colocado antes do verbo deitar.
Última crónica de António Lobo Antunes na Visão "Aguentar à bronca", disponível online.
1.º Parágrafo: "Ficaram por ali um bocado no passeio, a conversarem, aborrecidas por os homens repararem menos nelas do que desejavam.";
2.º Parágrafo: "nunca imaginei ser possível existirem cigarros friorentos, nunca os tinha visto, claro, mas aí estão eles, a tremerem. Ou são os dedos que tremem?".
Dúvidas: a conversarem ou a conversar? A tremerem ou a tremer? O uso do infinitivo flexionado (ou pessoal) e do infinitivo não flexionado
(ou impessoal) é uma questão controversa da língua portuguesa, sendo mais
adequado falar de tendências do que de regras, uma vez que estas nem sempre
podem ser aplicadas rigidamente (cf. Celso CUNHA e Lindley CINTRA, Nova
Gramática do Português Contemporâneo, Lisboa: Edições Sá da Costa, 1998, p.
482). É também por essa razão que dúvidas como esta são muito frequentes e as
respostas raramente podem ser peremptórias.
Em ambas as frases que refere as construções com o infinitivo flexionado são
precedidas pela preposição a e estão delimitadas por pontuação. Uma das
interpretações possíveis é que se trata de uma oração reduzida de infinitivo,
com valor adjectivo explicativo, à semelhança de uma oração gerundiva (ex.:
Ficaram por ali um bocado no passeio, a conversarem, aborrecidas
[...] =
Ficaram por ali um bocado no passeio, conversando, aborrecidas [...];
nunca imaginei ser possível existirem cigarros friorentos [...] mas aí
estão eles, a tremerem. = nunca imaginei ser possível existirem
cigarros friorentos [...] mas aí estão eles, tremendo.). Nesse caso,
não há uma regra específica e verifica-se uma oscilação no uso do infinitivo
flexionado ou não flexionado.
No entanto, se estas construções não estivessem separadas por pontuação do resto
da frase, não tivessem valor adjectival e fizessem parte de uma locução verbal,
seria obrigatório o uso da forma não flexionada: Ficaram por ali um bocado no
passeio a conversar, aborrecidas [...] = Ficaram a conversar
por ali um bocado no passeio, aborrecidas [...]; nunca imaginei ser possível
existirem cigarros friorentos [...] nunca os tinha visto, claro, mas aí
estão eles a tremer. = nunca imaginei ser possível existirem
cigarros friorentos [...] nunca os tinha visto, claro, mas eles aí estão a
tremer. Neste caso, a forma flexionada do infinitivo pode ser
classificada como agramatical (ex.: *ficaram a conversarem, *estão a tremerem [o
asterisco indica agramaticalidade]), uma vez que as marcas de flexão em pessoa e
número já estão no verbo auxiliar ou semiauxiliar (no caso, estar e
ficar).